O que se leva do curso de Direito?

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Artigo escrito pelo Prof. Me. Cristiano Dionísio.

Envelhecer em sala de aula é um desafio. A docência nos propicia uma realidade curiosa: o que para nós, professores, é memória, para os nossos alunos é história.

Recentemente, em uma das minhas aulas, citei um caso jurídico que tinha como objeto um cheque pré-datado. Para meu espanto muitos alunos não sabiam do que se tratava.

Para quem, como eu, cresceu durante as décadas de 1980 e 1990, isso soa muito estranho. O cheque pré-datado era praticamente uma instituição nacional. Foi a forma gouche do brasileiro “criar” crédito em um período de hiperinflação e profundas transformações sociais e econômicas.

Envelhecer em sala de aula é sentir-se datado. Suas referências ficam cristalizadas no tempo. A música que se utilizava, não é mais conhecida. Aquela cena do seu filme favorito, hoje, pouco diz. Para quem diz “basta se atualizar” isso, contudo, seria somente uma “meia verdade”. É claro que se torna fácil buscar novas referências para ilustrar situações jurídicas, afinal, nunca se teve tantas séries, filmes e podcasts a respeito.

Refiro-me aqui, contudo a um certo senso de pertencimento. O tempo passa e, de repente, estamos dando aula para os filhos dos nossos primeiros alunos. A caravela da nossa vida não navega mais impulsionada pelos ventos da contemporaneidade. Pelo contrário, o que nos resta é sermos remadores em um esforço profundo para não deixar escapar do nosso horizonte os corações e as mentes que pretendemos cativar pelos caminhos da Justiça.

E de todas essas memórias emerge uma pergunta: o que eu trouxe da minha graduação em Direito. O que se pode levar deste curso?

O DIREITO É RELAÇÃO

Todas as disciplinas do Curso de Direito, de forma direta ou indireta, indicam o Direito como uma forma de relação. Fala-se da Teoria Geral da Relação Jurídica, da Relação Jurídico-Processual, da Relação Jurídico-Tributária, da Relação Trabalhista e de outras tantas.

Ainda assim, contudo, percebe-se que os alunos pecam na construção das suas relações acadêmicas durante aquele.

Vejo turmas chegarem ao décimo período sendo, praticamente, um conjunto de desconhecidos. Os colegas pouco têm partilhado entre si. O que se pretende fazer após formado? Como chegou ao tema do TCC? Como conseguiu aquela oportunidade para estágio? Essas e outras questões, se levadas à público, causam um silêncio constrangedor.

Este, portanto, é um primeiro ponto a ser destacado: você leva da faculdade às relações que foi capaz de cultivar durante esses cinco anos de curso. Essa rede de relacionamento com professores e demais colegas de sala é brutalmente importante. Trata-se de um conjunto de pessoas qualificadas, com as mais diversas origens, e que compartilham de uma mesma cultura jurídica para realizar seus sonhos pessoais e profissionais. Acredito que esta riqueza tem sido desperdiçada.

Da advogada combativa ao delegado corajoso, passando pelo promotor de destaque chegando ao empreendedor jurídico, todos eles estão, desde já, na sala de aula. Sentados ao seu lado. O que você aprendeu com eles? O que você foi capaz de ensinar a eles? Os cinco anos do Curso é tempo mais que suficiente para que você possa fazer florescer suas melhores habilidades e competências. Faça isso agora. Construa relações honestas e sinceras com todos ao seu redor.

Veja, contudo, que não se está a falar somente de networking, o Direito, afinal, tem uma inequívoca carga de valores. O que se destaca aqui, portanto, é que sendo um curso de formação de lideranças, tem-se a oportunidade de colaborar com o conjunto da sociedade.

Quantas vidas serão tocadas pela sua, em razão da sua prática jurídica? Quão forte serão os valores da dignidade humana, da democracia e da república ao serem sustentados por você e por todos aqueles com quem foi capaz de estabelecer esse nível de relação?

Trago comigo ótimas memórias da minha turma de graduação. Movimento estudantil, jogos jurídicos, congressos e viagens: vivemos isso tudo. Alguns mais, outros menos, é verdade. Ainda assim, quando testemunho meus colegas nas funções que exercem hoje, fazendo a diferença, seguindo de forma corajosa os caminhos que escolheram para si, confesso ter um profundo orgulho: nada foi em vão. E, tenho certeza, que da perspectiva acadêmica e profissional, os vícios que se reconhecem em mim, de fato, são todos meus. Já as eventuais virtudes que eu possa ter, sem dúvida, tem a digital de cada um deles.

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O DIREITO É LEITURA

É impossível vivenciar o Direito sem ler. E não me refiro somente aos necessários textos de lei e decisões judiciais, mas também às doutrinas e romances. A leitura atenta e crítica de uma obra empresta novo significado ao curso. Estudar processo penal, por exemplo, tendo lido O Processo, de Franz Kafka, é outro nível de experiência e aprendizado.

São nas páginas de cada texto, sendo ele técnico ou literário, que se afia a razão crítica de quem tem o Direito como ferramenta e a Justiça como obra. E, meus amigos, não enganem, a vida jamais permitirá que você coloque em dia a leitura que deveria ter feito durante a graduação. É impossível. Não haverá tempo para isso.

Ainda que a vida seja áspera, estudar “resumos” é um doping acadêmico: você pode até passar por algumas provas, mas jamais terá uma carreira desta forma. O melhor caderno da sala, não terá o mesmo conteúdo de uma doutrina sólida e reconhecida em decisões judiciais. Abrace este desafio. Bastam 15 (quinze) minutos por dia. Em um mês você terá lido, no mínimo, um livro, em cinco anos terá lido, no mínimo, sessenta obras. Você não precisa ter uma habilidade brilhante de leitura. Você não precisa ter uma concentração inabalável. Basta que você tenha a constância de 15 minutos de leitura por dia. Isso fará uma revolução na sua vida.

RELAÇÕES E LIVROS

Ao fim, é exatamente isso que se leva do Curso de Direito: as relações que você construiu e as leituras que você fez. Ninguém lembrará da sua nota naquele trabalho.

Ninguém lembrará do seu caderno. Ninguém lembrará de onde você se sentava na sala. Por isso não se preocupe em como você será lembrado, mas sim como se lembrará de todos.

Se tiver sorte, como eu acredito que tive, lembrará com orgulho e gratidão cada amizade vivida e cada leitura compartilhada.

Fique firme.