Artigo escrito pelo Prof. Me. Cristiano Dionísio
Ainda nas primeiras aulas do Curso de Direito todos os acadêmicos, desde sempre, e talvez para sempre, são apresentados à máxima “onde houver sociedade, haverá o Direito”.
Esta frase, assim como a Lua, pode ser observada por distintas perspectivas, ou fases. Venho provocá-los quanto a uma das possibilidades para a qual ela nos remete: a indissociabilidade entre Direito e Cultura.
Se é verdade que o Direito está enraizado em qualquer experiência humana que se dê em um contexto de organização social, é forçoso reconhecer que a Cultura precede aquele. De uma perspectiva filosófica entende-se que a Cultura decorre da intervenção humana sobre a realidade na qual está inserido. Este poder de transformação do sujeito sobre a realidade tem na Cultura, portanto, o seu principal e mais imediato resultado.
Desta premissa percebe-se que da alimentação à religiosidade, tudo carrega o testemunho do que a humanidade culturalmente é capaz de realizar e, para além disso, é capaz de sonhar. Antes do homem chegar à Lua, a literatura de Júlio Verne já havia pousado por lá.
Antes de haver legislação trabalhista e decisões judiciais sobre condições de trabalho e assédio no ambiente laboral, Charles Chaplin, ainda no cinema mudo, em seu monumental Tempos Modernos, já denunciava os riscos de uma tecnologia utilizada de forma não ética.
Chamo a atenção, portanto, para algo tão importante quanto urgente: tanto o Direito quanto a Cultura são manifestações da sociedade, mas é da Cultura que emerge os fundamentos do Direito. Conhecer e fazer Cultura, portanto, é tornar-se mais apto a operar o Direito de forma socialmente relevante.
A IMPORTÂNCIA DO REPERTÓRIO CULTURAL
Sinto que uma importante dimensão da formação acadêmica não tem sido devida prestigiada nos Cursos de Direito: a formação cultural dos nossos acadêmicos. Não raro era comum, ainda que de forma idealizada, reconhecer na figura dos grandes juristas do país alguém de sensibilidade avançada. Profissionais que para além do conhecimento técnico do Direito, eram capazes de reconhecer as desventuras da alma humana e, talvez por isso, faziam do Direito uma arte em construção da Justiça.
Em uma era em que a notoriedade se manifesta em likes, views e seguidores, o repertório cultural dos operadores do Direito, é forçoso reconhecer, parece ficar em segundo plano. Isso traz efeitos deletérios. Como assimilar a urgência de um direito processual transparente e democrático sem ter lido O Processo (Franz Kafka)? Como entender os desafios da Segurança Pública no Brasil sem ter assistido (com olhar crítico) Cidade de Deus (Fernando Meireles) e Tropa de Elite (José Padilha)? Como sentir em si os desafios da inclusão de pessoas com deficiência sem sentir-se rasgado pela leitura do visceral O Filho Eterno (Cristóvão Tezza)?
Quem estuda e pratica o Direito precisa de repertório cultural porque a sua vida sempre será menor que os desafios que lhe serão apresentados em sua jornada profissional.
Atribui-se ao filósofo Friedrich Nietzsche a famosa frase de que “sem a música, a vida seria um erro”. Pode-se afirmar, na mesma linha, que sem Cultura, a prática do Direito é vil. Seria como beber vinho para simplesmente (ainda que de forma equivocada) procurar matar a sede, e não para celebrar a amizade, o amor e a vida.
De outra forma, ainda, é importante reconhecer que o Direito enquanto ciência normativa, sustenta-se em valores e princípios que são absolutamente incabíveis em qualquer definição legal. Como definir com a rigidez do texto de lei o que é justiça, equidade, ética, boa-fé, solidariedade, moral e bem comum? De uma perspectiva platônica pode-se dizer que é preciso ter o espírito sensível para alcançar tais ideias. Se as asperezas da vida cotidiana dificultam que tais horizontes sejam vislumbrados, a Cultura pode nos elevar para além da imediatidade da rotina para que, com sorte, de um ponto mais amplo, consigamos enxergar a direção mais correta a seguir.
A CULTURA FAZ DO MUNDO UMA SALA DE AULA
A Cultura faz do mundo uma sala de aula. Esta visão mais generosa, quando incorporada à perspectiva do Direito, faz o Curso ser infinitamente mais rico e imersivo. Se o Direito está na Sociedade e a Cultura também é inerente a ela, tem-se como consequência que o aprendizado cultural transborda as limitações de hora e local para se aprender e praticar o Direito.
Ler livros, ir ao teatro, assistir filmes, ouvir músicas, consumir séries, visitar exposições, conhecer outras práticas religiosas e descobrir novas culinárias amplia nossos horizontes pessoais e, por derivação lógica, nossas habilidades e competências profissionais.
Por onde começar? Eu não tenho a pretensão de trazer esta resposta. Sei, contudo, que muitos professores se esforçam para indicar obras de diversas naturezas que mantém aderências com os conteúdos que lecionam. Este pode ser um primeiro passo. Apreciar a Cultura, no limite, é um exercício de humildade e esperança para o Direito. Humildade por reconhecer que nele não estão todas as respostas, e esperança por saber que da sua prática, pode-se justificar os sonhos dos que se foram e preparar os caminhos para os que virão.
Fiquem firmes.